Sonhos de grandeza, erotismo e tabus
A quarta mesa-redonda do IV Seminário Docere, delectare et movere: sonhos, ficções e (ir)realidades foi realizada na manhã de 17 de fevereiro de 2024, com a comunicação de quatro professores/pesquisadores das Letras Clássicas e da História.
O sonho de Agamêmnon na Ilíada - Beatriz de Paoli (Letras Clássicas/UFRJ) selecionou passagens da Ilíada que descrevem um sonho do general Agamêmnon em que recebe uma mensagem de Zeus para instigá-lo a atacar a cidade de Troia. Agamêmnon acredita se tratar de uma revelação divina legítima, quando na verdade é uma mensagem enganosa da divindade. Com isso, o enganado tenta enganar outros com uma narrativa mentirosa da falsa mensagem apreendida no sonho. A professora apresentou reflexões sobre como os sonhos podem aparecer também de forma enganosa na cultura greco-romana, ainda que o caráter onírico premonitório seja mais frequente na literatura grega.
Sonho e epifania na épica antiga: o caso das Pós-Homéricas de Quinto de Esmirna - Rafael Brunhara (Letras Clássicas/UFRGS) se propôs a explicar como sonho e epifania se misturam na antiguidade tardia por meio de uma análise da obra do poeta épico Quinto de Esmirna, em que o sono aparece apenas duas vezes. Por misturar sonho e epifania, Quinto de Esmirna não retrata o sono como Homero, pois o foco está nas necessidades de seu tempo acerca do tema. Nos poemas homéricos, por sua vez, o sono tem um ar de mistério e não podemos ouvir as palavras, por desígnio da deusa Pallas. Nesse sentido, o sono em Quinto de Esmirna é descrito como doce pelo professor, e nele as palavras são ouvidas.
O sonho de Alexandre: As bases homéricas da civilização helenística - O professor Rafael Silva (Letras Clássicas/UECE-Aracati) discorreu sobre como o sono e a arte são importantes para a vida. Ele tomou como ponto de partida a passagem da Vida de Alexandre escrita pelo historiador e filósofo platônico grego Plutarco sobre o sonho de Alexandre com a fundação de Alexandria. Esse acontecimento está representado na série Netflix Alexandre: O Nascimento de um Deus (Alexander, the making of a God, 2024). O pesquisador defendeu que a fundação das sociedades está entre sonho e razão; portanto, trata-se de uma tentativa de racionalizar as irracionalidades.
O sonho de Dáfnis: Pã e o Império Romano - Igor Cardoso (História/Projeto República/UFMG) fechou a mesa redonda com a apresentação do universo do romance Dáfnis e Cloé ou As pastorais, escrito por Longo (séc. II ou III d.C.), e como os sonhos de Dáfnis contribuem para a construção da narrativa. O professor analisou a exposição da violência masculina sobre as mulheres por meio das ações do deus Pã (deidade dos prados e florestas) e, ao mesmo tempo, a subversão desse cenário nos sonhos de Dáfnis, nos quais essa violência não existe.
Ovídio e a máquina do mundo na quinta mesa-redonda
Ovídio onírico: sonhos de erotismo e metamorfose e sua recepção na série Sandman - Júlia Avelar (Letras Clássicas/UFU) relacionou o clássico Metamorfoses (8 d.C.), do poeta latino Ovídio, à série Netflix Sandman (The Sandman, 2022), adaptada da história em quadrinhos de Neil Gaiman, que também criou a versão audiovisual. A professora enfatizou a temática e as questões e culturais para mostrar que as duas obras trazem não só a imagem de Morfeu, deus dos sonhos, como criador, mas também o estreitamento (ou contiguidade, nas palavras de Calvino) entre figuras divinas e humanas.
Sonho e incesto: Ovídio e depois - O professor Marco Formisano (Letras Clássicas/Ghent University) destacou que o sonho tem não só potencial criador, como também é o espaço para a realização daquilo que, fora do âmbito onírico, seria condenável. A partir da perspectiva de María Zambrano (O sonho criador, 1965), Formisano mostrou que tal ideia não está associada apenas à personagem Biblis, de Metamorfoses, que se apaixonou pelo próprio irmão gêmeo, mas a diversos outros personagens literários.
O sonho arquitetural de Cipião - Rodrigo Bastos (Arquitetura/UFSC) encerrou a mesa com reflexões sobre a “máquina do mundo” e sua interferência na arquitetura. A partir da noção filosófica do universo como máquina divina, que influencia os astros e as estações, o professor demonstrou que os arquitetos clássicos tentavam reproduzir tal estrutura ao buscar trazer equilíbrio às construções, sobretudo as religiosas.
*Por Bruna Zarattini (Doutoranda em Letras/UFMG) e Najla Gaia (Mestranda em Filosofia/UFMG)
Fotos: Romana Guimarães (Mestranda em Filosofia/UFMG), André Bomfim Mynssen Coelho (Doutorando em Filosofia/UFMG) e Clinton Santos (Graduando em Filosofia/UFMG)
Links complementares:
Vídeos do canal do professor Rafael Silva sobre Psicanálise e Antiguidade:
Édipo (o dos gregos e o de Freud) - A Medusa de Freud e a dos gregos - Do mito de Narciso ao narcisismo - Lógos e páthos: reflexões sobre a Antiguidade e a Psicanálise
Confira o que aconteceu nos outros dias do IV Seminário Docere, delectare et movere: sonhos, ficções e (ir)racionalidades:
15/02 Memórias, presságios e poderes
16/02 Recepção dos clássicos, arqueologia dos sonhos
18/02 Sonhadores de imagens e ficções
19/02 (Ir)racionalidades em diferentes "paisagens"
Resenhas dos filmes exibidos
Malpertuis (Harry Kümel, 1971, 110 min.)
O Manuscrito de Saragoça (Rekopis znaleziony w Saragossie, Wojciech Has, 1965, 3h02min.)
A Hora do Lobo (Vargtimmen, Ingmar Bergman, 1968, 1h29min.)